O tempo depois da verdade
Por Alexandre Honrado
Já estudamos, com mais ou menos afinco, a comunicação da era da pós-verdade, numa espécie de submissão, de conformismo face à carga muito pesada dos projéteis que nos derrubam no formato das notícias falsas que pululam quotidianamente. A falta de qualidade e de isenção dos serviços noticiosos e a capacidade de aspergir boatos sobre os crédulos em que as redes sociais se tornaram, traz essa marca à ribalta da Academia que aos poucos se organiza para ver como pode – ou não – lidar com tanta aberração.
Em boa hora esse estudo encaminha os mais atentos. A Universidade de Aberdeen, por exemplo, lançou o repto, via o seu seminário CEKAS, para seguir as ideias da professora Åsa Wikforss (de Estocolmo), reunidas sob o título de debate “A Democracia na era da pós-verdade”. Há outros exemplos, mas aponto este.
Não é um juízo estético ou um exercício de vulgaridade repetirmos que a Democracia está em perigo. As últimas sondagens ignoram as altíssimas percentagens de eleitores (potenciais) exaustos, que não se aproximam do reduto político (essa espécie de clube de muito poucos), e do emaranhado das novas tendências da moda, de fingir que se é contra o sistema, minando o sistema, vivendo dele, parasitando-o e impondo-lhe valores antiquados e cediços, recauchutados sob a pele mágica e enfeitada e enfeitiçada de frases superficiais e lugares comuns capazes de unirem ódios como se fossem metas progressistas. Há mesmo candidatos que se vangloriam, que tiveram míseros resultados e largas derrotas, que reunira como intenção de voto menos pessoas do que as que assistem à novela, ao programa das manhãs, ao culto dominical, ao derby mais renhido, e que, no entanto, festejam na praça pública como é apanágio dos tontos da aldeia. Não é exceção encontrarmos nos seus discursos a mentira organizada e alguns até pagaram a figurantes e atores amadores para se fazerem passar por inimigos, de modo a construir socialmente uma realidade falsa para uma opinião pública que é pouco apta, pouco hábil, pouco culta e muito indefesa perante tais ataques à sua ingenuidade.
Aquilo a que a teoria da cultura chama o netAtivismo, que mais não é do que o olhar explicativo sobre a rede apertada que nos tolhe nos novos contextos conectivos de redes informativas e dos problemas que colocam, desde os mais técnicos( como base de dados onde nos incluem e das quais ficamos reféns), aos algoritmos (que nos selecionam como gado de consumo, agrupando-nos e fazendo-nos crer que somos o que afinal nunca seríamos) e a teoria das redes, sem esquecer os objetivos mais políticos e estéticos, que não deixam de querer padrões para o nosso comportamento social, esse estudo do NetAtivismo acabará por explicar o ser em que nos tornámos, com uma nova verdade em casco de mentira, com uma amnésia como lugar intenso de recolhimento, com a querela como ponto de partida. Que si, vivemos em querela, em confronto, em combate, em traição e falta de solidariedade. Vivemos marcados com o ferro em brasa da cultura da morte (morte física, intelectual, de valores, de afetos).
Recordo sempre o pensamento de João Paulo II quando, em 1995, dissertou sobre a paz e a vida, destacando que a última é caracterizada nos nossos dias «pela imposição de uma cultura antissolidária, que em muitos casos se configura como verdadeira «cultura de morte». É ativamente promovida por fortes correntes culturais, económicas e políticas, portadoras de uma conceção eficientista da sociedade».
Estou à vontade para citar João Paulo II, até porque não tenho ligações a quaisquer igrejas e o que entendo como crença é tão meu e individual que não é para aqui chamado.
O texto que aqui trago foi tornado público em 25 de março de 1995, sob o título «Carta Encíclica evangelium vitae do sumo pontífice João Paulo II aos bispos, aos presbíteros e diáconos, aos religiosos e religiosas, aos fiéis leigos e a todas as pessoas de boa vontade sobre o valor e a inviolabilidade da vida humana».
Alexandre Honrado
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